terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Por uma cabeça

Assistindo ao filme Seabiscuit, justo na parte em que o “patinho feio” impõe uma acachapante derrota ao melhor cavalo de sua época, me vieram à mente lembranças correlatas muito queridas.

Elas estão ligadas ao que aconteceu em um gélido fim de-semana de 1961. Eu e mais uns poucos brasileiros estávamos em Buenos Aires para acompanhar a participação de cinco cavalos nacionais no meeting clássico do GP 25 de Mayo, nos santuários de Palermo e San Isidro. Acompanhar, e muito provavelmente, perder em suas patas, já que aqueles eram tempos em que os gringos davam cartas e jogavam de mão, aqui ou acolá. Que ousadia querer batê-los em seu próprio campo de jogo? Pensávamos todos, mais que pessimistas.

Elizabeth, exímia velocista, seria a primeira a ir para o “sacrifício”. Mas, assim, sem mais nem menos, exibindo a linda farda solferino e azul do Haras Ipiranga, ela surgiu no disco à frente de um numeroso pelotão. Pouco depois, foi a vez de Derah, do Julio Zarzur, dar uma impressionante demonstração de poderio locomotor na milha. Por fim, Major’s Dilema, o melhor filho do excelente irlandês Orbaneja, triturou os adversários nos 2.200 metros.

Coisa espantosa. A multidão simplesmente não estava acreditando no que vira. Para dizer a verdade, nem nós, a não ser pelos dividendos, para lá de compensadores. Voltamos todos para o hotel para uma festa que varou a madrugada.

E a humilhação maior para os argentinos ainda estava por vir. No prova mais nobre, de domingo, ninguém acreditava que a vitória pudesse escapar de um dos representantes nativos. O máximo que concediam, aficionados e mídia, era que uma peruana, cantada em prova e verso, pudesse lhes dar algum trabalho. Os nossos Farwell e Escorial se colocavam na condição de outsiders, desapercebidos. Principalmente o primeiro, a quem coubera uma péssima baliza.

Dada a largada, Farwell fez o que já fizera em sua campanha invicta de 15 vitórias consecutivas em pistas nacionais, incluindo o mais recente GP Brasil: tomou a frente e foi quebrando um a um os que ousaram acompanhar o seu ritmo frenético. Bem antes da curva, a peruana já caíra batida, enquanto lá no fim do bloco, Escorial, levado por um calculista de primeira, Pancho Irigoyen, apenas espiava o ritmo alucinante imposto pelo patrício.

L.B.Gonçalves, jóquei de Farwell, me confessou dias depois que nunca vira uma reta tão comprida. “O disco não chegava nunca”, me disse, consternado. Ao fim e ao cabo, esgotado por duelos encarniçados, o pretinho do Haras Jahu entrega os pontos no derradeiro galão. Justo para quem? Para Escorial, certamente um dos mais completos atropeladores do turfe nacional. Uma cabeça separava os dois na transposição do disco. Tal e qual a letra do imortal tango, na voz de Carlos Gardel, Por Uma Cabeza.

Nas arquibancadas lotadas por 60, 70 mil fanáticos argentinos, um silêncio que se cortava a faca, quebrado apenas por gritos histéricos de brasileiros endoidecidos. O impossível tinha acontecido: ponta e dupla dos “macaquitos”.

Temos memória curta, porém. Pouca coisa restou dessa epopéia, a não ser na lembrança de uns poucos que a testemunharam. Talvez alguns recortes de jornais e um filme da época, zelosamente guardados pelo museu do turfe do Jockey Club de São Paulo. Muitos dos turfistas de hoje, abaixo dos 60 anos, sequer sabem direito o que representou essa jornada épica. No entanto, foi ela que nos livrou definitivamente de um incômodo complexo de vira-lata. Foi ela que, seguramente, levou ao reconhecimento internacional a criação nacional.

Bom que Ricardinho esteja por lá, quase meio século depois, escrevendo uma espécie de continuação dessa linda história, iniciada por cinco desbravadores inesquecíveis.

Um comentário:

José Augusto Seabra Sales disse...

Prabéns pelo BLOG, o relato desses "causos" firmam aos mais novos e com outros enfoques do Turfe, como foram importantes esses "desbravadores" com essas primeiras conquistas. Não estive nessa corrida, pois ainda era de colo, mas guardo os relatos e várias fotos, dessa e de outras várias, que fazem desse esporte um orgulho em nossa família.
Um grande abraço.

José Augusto Seabra Sales