quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Mico indigesto
Desde que chegou a Porto Alegre para ser aprendiz de jóquei, Odinei Serrão é a escolha natural dos colegas para gozações. Muito provavelmente por causa de sua personalidade jovial e afável, capaz de absorver qualquer tipo de brincadeira. E também por influência, talvez, de sua cabeleira ruiva, cor de fogo. Nesses muitos anos de amizade com Foguinho, nunca o vi perder a tramontana por causa de uma gozação, ainda que de mau gosto.
Parece que, dessa vez, no entanto, meu amigo pagou um mico indigesto. Também , pudera! Ele só foi perceber que a potranca La Jaskie, comprada em leilão por uma penca de amigos ao Haras Nova Vitória, estava grávida só depois de fazê-la aprontar 300 metros, a pau. No dia do apronto, alertado pelos colegas de que a filha de Mig estava muito gorda, retrucou: “Que nada, ela está precisando é de serviço”.
Estava mesmo precisando de pau a La Jaskie, mas não para desatar carreira, e sim para parir. Foi o que ela fez tão logo se livrou do cansaço do apronto. Sem a ajuda de veterinário, deu a luz a um lindo potrinho, em plena cocheira.
Agora, a questão é como resolver uma provável pendência legal. La Jaskie volta para o haras de origem? Ou os compradores aproveitam a oportunidade do 2 em 1?
Se eu bem o conheço, Foguinho já está pronto para outra. E provavelmente à procura de algum mico alheio para devolver as gozações.

terça-feira, 5 de agosto de 2008


Pavão e seu carma

Pavão, com os seus 130 quilos, é figura carimbada das rodas turfísticas de Porto Alegre e meu amigo de longa data, mas, também, um dos que mais situações inusitadas já viveu relacionadas a uma proverbial falta de sorte em qualquer tipo de jogo. Pinçei uma de sua coleção, contada pelo próprio.

Como tu sabes, meu ódio ao Grêmio é tão grande ou até maior que o meu amor pelo Inter. Já nem sei direito o que mais me deixa feliz, se uma vitória do colorado ou uma derrota do tricolor.

A chamada batalha dos Aflitos, que definiria qual dos dois (Grêmio ou Náutico) voltaria pra a Série A, foi a oportunidade que eu esperava para jogar uma pá-de-cal na tumba daquele clubezinho da Azenha. Por coincidência, a caminho da agência de apostas da Alfredo Bins, dei uma parada na banca do Tatu e percebi que ele estava vendendo foguetes, justamente a matéria-prima de que estava precisando. Comprei o necessário com 20 dos 70 reais que tinha no bolso, guardando os outros 50 para uma aposta com algum incauto ‘inimigo’. Dona Janete, vendedora de pules da agência, ficou encarregada de guardar o embrulho, sem imaginar o que estava dentro.

Começa o jogo e lá pelas tantas penalty para o Náutico. Esfrego as mãos de contentamento. Mas, não é que o neguinho desperdiça? Quase vou à loucura. Os fados parecem estar a meu favor, penso. Outra penalidade máxima e essa seguida da expulsão de três jogadores do Grêmio. Como escapar disso? Não agüento: antes mesmo da cobrança, procuro dona Janete, pegi a caixa, desço as escadas a galope e faço a festa na calçada, estourando os foguetes.

O resultado todos sabem. O Grêmio voltou para a série A, fiquei sem minha rica graninha e ainda tive de agüentar por horas a gozação de uns tantos gremistas ensandecidos. Ás vezes, sonho que estou sendo linchado por torcedores do Náutico, inconformados com a minha capacidade de canalizar tanto azar”.

Se você acha que tudo isso serviu de lição ao Pavão, mude de idéia. Não faz muito, fiquei sabendo que “o gordo” perdeu a grana reservada para trifetas e quadrifetas em uma aposta santa, a favor do Coritiba contra o Grêmio.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Uma aventura em Las Piedras

Com uma pasta recheada de dólares, eu e três amigos, lá pelo fim do século passado, decidimos dar uma esticada ao Uruguai, com um duplo objetivo: comprar um bom cavalo para correr os clássicos de Porto Alegre e “sentir” o interesse dos uruguaios por animais brasileiros. O Mercosul ainda engatinhava, mas já existiam normas facilitando a entrada e saída de mercadorias pela fronteira.

Um treinador de lá, que já andara pelo Cristal cuidando dos animais do Haras Ferradura, era o nosso contato. Nas muitas conversas com ele e um filho, conhecido por Loquijo, fomos alertados para uma possibilidade de lucro fácil: já que tínhamos muitos dólares, por que não bancar as corridas de sextas e sábados na vizinha Las Piedras? A vantagem era toda da banca, amparada por um rateio fixo de 3 por 1, diziam pai e filho.

A ambição acabou falando mais alto e lá fomos nós para Las Piedras, a um tiro de canhão de Maroñas. Na sexta, entre mortos e feridos, saímos com um lucro razoável de 1.500 dólares, quantia suficiente para reforçar a impressão de que tínhamos descoberto uma mina de verdinhas. No domingo, uma outra história seria escrita, porém: venceram todos os cavalos muito apostados nas bancas, à exceção de um. Como não tínhamos a vantagem de poder descarregar parte das apostas em outros banqueiros pelo fato de sermos gringos e desconhecidos, ficou claro que a mina vertia água e que os riscos eram bem maiores que os previstos. Feito o balanço final, no entanto, estávamos todos apenas um pouco mais pobres, graças ao único favorito que fracassara.

Aliviados, amanhecemos no domingo já com a idéia fixa de desistir da aventura. Aliviados em termos, porque nem bem o dia raiara e já estávamos às voltas com o proprietário do cavalo que não vencera, exigindo o seu dinheiro de volta. Dizia, indignado, que Loquijo induzira um dos seus cavalariços a dopar negativamente o animal. “Le aplicaron una dormidera a mi caballo”, não cansava de repetir. Foram muitas as ameaças de parte a parte, até que um dos nossos proferiu uma, definitiva, que espantou o uruguaio: iríamos dar queixa dele na polícia por ameaça de morte.

Resumo da ópera: passamos a tarde inteira de domingo em uma quase deserta delegacia, tentando convencer o plantonista de que éramos vítimas de uma armação. Por sorte, queixas semelhantes já haviam sido feitas contra o mesmo cidadão e fomos finalmente dispensados. Fosse o policial um pouco mais atento, entretanto, e teríamos sido todos trancafiados. Lá, como aqui, bancar corridas é ilícito penal. Pelo que soube depois, Loquijo passou pelo menos um mês sem sair de casa, esperando a poeira baixar.

Ainda cabreiros com as ameaças, deixamos Montevidéu em direção a Punta Del Leste e Chuí, sempre olhando para trás e para os lados, temendo uma emboscada. Alívio mesmo só quando cruzamos a fronteira e pegamos a estrada para Porto Alegre.

A idéia de importar e exportar cavalos acabou por se perder nas idas e vindas da vida. Uma pena, porque poderíamos estar ainda ganhando dinheiro com um mercado de mão dupla hoje em franca expansão. Las Piedras? Bem, nunca mais estive lá. Pelo que me consta, voltou a ser apenas um apêndice de Maronãs. Os banqueiros a 3 por 1 certamente se mudaram todos para o prado da capital.

*Por razões óbvias, omiti a identidade dos personagens desta história.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Só faltava falar

Guardo dos meus tempos de treinador a boa lembrança de dois cavalos intrigantes, da mesma estirpe daquele que gostava de sonhos, como conta em seu blog o Marco Aurélio Ribeiro - El Boiero e Jumbo Lark. O primeiro, de propriedade do amigo Sand Nunes (o mesmo do ganhador do último Grande Prêmio Brasil, L’Amico Steve), portador de algumas fraturas nos dois joelhos, gostava de me lembrar disso toda vez que caminhava em direção à raia para se exercitar. Um dia, claudicava da mão esquerda, no outro, da direita. Claudicação que acabava no momento mesmo em que o jóquei lhe dava rédeas. A partir daí, dava por terminada a sua “farsa” e abria um galope vistoso, de animal são como um coco. E a volta à cocheira era sempre em trote entremeado de pinotes, lindamente coreografados. Para meu desgosto, El Boiero terminou seus dias anonimamente em Campos, depois de comprado em um claiming que venceu por vários corpos.

Jumbo Lark, um filho de Tumble Lark, criação do Haras Rosa do Sul, bem ao contrário de seu companheiro de baia, jamais ganhou uma corrida, mas talvez tenha sido o cavalo de minha propriedade que mais colocações conseguiu em 3 anos de campanha, se não me engano, 15 segundos lugares e outros tantos terceiros, alem de incontáveis quartos e quintos. Deve ter faturado em colocações o equivalente a uns três prêmios de primeiro lugar. Seu “divertimento” predileto era, quando em exercício, parar o galope de sopetão, derrubar o jóquei e sair em desabalada carreira, com o rabo em arco, na direção de sua cocheira. Nada de extraordinário, não fosse o fato de que, para alcançar seu intento, Jumbo tinha de dobrar duas esquinas. Depois de um certo tempo, já acostumado com o seu incrível senso de direção, eu nem me preocupava mais com suas estrepolias, mas apenas com verificar se o seu indigitado cavaleiro não tinha se ferido. Sabia que, em poucos minutos, ela já estaria na baia, devorando a sua porção de alfafa.

Vivi momentos de muita tristeza quando Nilsinho Genovezi bateu o martelo dando por consumada a venda de Jumbo Lark em leilão. Saí do tatersal de Cidade Jardim de cabeça baixa, pensando com meus tristes botões: “Onde mais vou arranjar um cavalo tão brincalhão, que sempre me olha de um jeito maroto, como a dizer “ta vendo como eu sei das coisas?” Onde vou arranjar um cavalo que só falta falar?

terça-feira, 3 de junho de 2008

Depoimento:

Abaixo, relato de Marcelo Caetano, leitor do blog, cujo conteúdo bem pode ocupar o espaço reservado à história da semana.


“Sou professor de ginástica em uma academia e gosto de curtir corridas de cavalos, especialmente nas segundas-feiras. Numa das últimas, cheguei ao 9º páreo sem uma só pule premiada.

Decidi então seguir a sugestão do Blog do Senna para aquela prova, justamente a da super quadrifeta. Estava lá: ”páreo complicado, mas quem combinar tais e tais cavalos tem grande chance de fechar a quadrifeta”.

Quando já estava no guichê, percebi que meu dinheiro era insuficiente para combinar os quatro números. Durante o dia, tinha abastecido a moto e esquecera em casa o troco de uma nota de cinqüenta reais. O jeito foi montar um jogo com dois animais para primeiro e segundo, com os outros dois para terceiro e quarto.

Fiz a aposta e fui direto para um jogo de poker entre amigos, de modo que só muito mais tarde, pela Internet, fiquei sabendo que a quadrifeta, com os quatro animais indicados, combinados, rateara mil reais, mas em uma ordem diferente da que eu escolhera.

A primeira coisa que me veio à cabeça foi aquele bordão de um anúncio de motoca...”ela combina com tudo, só não combina com posto de gasolina”. Não combina mesmo, do contrário eu teria curtido, pela primeira vez, uma aposta vencedora de alto rateio.”

Lamento, Marcelo. Mas o blog continua, felizmente, com bom índice de acertos. Haverá outras oportunidades, com certeza.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Zagaia, puro veneno

Inimigos cordiais, Chico e Zecão. Em toda santa reunião, lá estavam eles, armando apostas paralelas. Com total vantagem para o primeiro, cara bem informado, freqüentador de cocheiras.

Até o dia em que Zecão comprou um cavalo só para ter motivo para se misturar aos profissionais, nos matinais. Sua busca não era por barbadas, mas por informações sobre o estado físico de prováveis favoritos. Tinha idéia fixa, quase uma obsessão: dar o troco ao Chico, deixando-o só de cuecas.

Naquela noturna, Zecão estava armado de informações preciosas. Artimanha daqui, artimanha dali, acabou por montar várias paradas muito favoráveis.

Lá pelas tantas, sem saber o que estava acontecendo, Chico foi esvaziando os bolsos até ao ponto de só lhe restarem as roupas do corpo. As mesmas que ele deu como garantia de uma última “parada”. Foi ao banheiro, despiu-se, entregou tudo ao adversário, mas ainda confiante de que a égua Zagaia, com trabalhos assombrosos, lhe devolveria todas as suas perdas.Pobre Chico, não sabia que a égua estava dodói de um casco, prontinha para um completo fracasso.

Ainda fechado no banheiro, nu e com frio, Chico, estarrecido, ouviu o narrador anunciar que o jóquei de Zagaia desistira da corrida na entrada da reta. Pálido e desconsolado, o indigitado se perguntava: o que fazer agora? As tribunas se esvaziaram rapidamente, como sempre acontece nas noturnas, e logo depois já não havia níngüem por ali.

Só muito depois, o nosso “paradista” foi salvo por um guarda noturno que tivera a santa idéia de fazer xixi naquele banheiro. Em casa, madrugada alta, Chico ainda sentia na pele o significado da expressão corriqueira entre jogadores compulsivos - “...e perdi até as calças”. E o pior é que não conseguiu devolver a sova ao Zecão, semanas depois vítima de um fulminante enfarte em plena sociais.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Ligeiro e duro

Gervásio, talvez o mais compulsivo dos apostadores em cavalos que conheço, tem gravado em fogo na memória o instante em que decidiu entrar em um caixa eletrônico do Banrisul, no centro de Porto Alegre, para verificar se ainda tinha crédito para mais um empréstimo vinculado ao seu já combalido holerite de servidor do Estado. Noivo há muitos anos e beirando os 40, é preciso dinheiro para consumar um casamento que já não sabe mais como adiar.

Gervásio fica então sabendo que seu salário ainda comporta uma prestação de 400 reais, só acessível, porém, se o empréstimo for contratado em 72 meses. Já esquecido do casamento, mas de olho nas próximas carreiras, meu amigo não tem dúvida: aperta as teclas “milagrosas” e saca na hora 3 mil reais.

Nem é preciso dizer que a grana vai se esfarelando em picks, trifetas e quadrifetas, uma grande parte em apostas paralelas, “um na frente do outro”, modalidade em que Gervásio se julga especialista. Ao cabo de um fim-de-semana, não sobram sequer os trocados para pagar o cartório.

Meu amigo agora vaga de porta em porta, à procura de quem lhe possa doar azulejos, portas e janelas, cimento e material elétrico para, enfim, poder terminar a casinha que começou a construir há sete anos em um terreno do bairro de Camaquã. A futura esposa nem de longe desconfia que o contra-cheque do noivo terá saldo líquido de apenas 17 reais até 2014.

Gervásio, porém, é ligeiro e duro. Nunca esmorece. No momento, move uma ação contra o banco, exigindo que lhe sejam descontados apenas 30% do salário. Enquanto isso, sonha que acabará por encontrar um jeito de driblar o azar e fechar sózinho um Pick 8, várias vezes acumulado. E, ao invés de uma casinha em Camaquã, oferecer um apartamento de cobertura em Menino de Deus à noiva, pelo visto também dura na queda.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

O caminho das pedras

Partindo do fato de que corrida de cavalos está longe de ser uma ciência exata, tipo loteria ou jogo-do-bicho, e sem qualquer presunção, posso lhes assegurar que aprendi o suficiente, à custa de muito dinheiro, sobre a ingrata tarefa de como apostar nos cavalinhos sem errar demais. Tanto isso é verdade que ousei criar este espaço com a pretensão de facilitar a vida dos apostadores, o que, para minha satisfação, parece que estou conseguindo diante da quantidade de acessos ao blog.

Aproveito então o ensejo para explicar como analiso as carreiras, na expectativa de que isso venha a acrescentar algo mais aos métodos de escolha de cada apostador. Os principais itens que considero em uma análise são: enturmação, retrospecto, jóquei, baliza, ritmo de corrida, raia e, principalmente, tempos obtidos por cada competidor em suas últimas corridas.

Detalhando:

1) Enturmação: por ela, é possível avaliar o potencial de cada competidor em relação aos adversários que vai enfrentar. O difícil é destrinchar os claimings, provas que misturam, quase sempre, animais de idades e enturmações diferentes;

2) Retrospecto: indica ao analista como o animal tem se comportado em carreiras prévias: posição em que chegou, a que distância do primeiro colocado, que tempo corrigido assinalou, com que peso correu, se manteve, perdeu ou manteve seu peso físico, etc.;

3) Jóquei: é fundamental estar a par das qualidades e defeitos do ginete envolvido, uma vez que a maioria dos páreos, especialmente os mais equilibrados, é vencida por animais pilotados por ginetes em melhor posição na respectiva estatística de jóqueis;

4) Baliza: analiso a posição de largada tendo em conta as características do animal. Como regra geral, os ligeiros levam vantagem quando largam por fora dos demais, pois rapidamente podem pegar a ponta e, encetando uma diagonal, livrarem vantagem justamente em uma área decisiva do percurso, a curva final; de modo inverso, os atropeladores se dão melhor em balizas internas, que lhes proporcionam menos riscos de prejuízos;

5) Ritmo de corrida: Animal ligeiro (que pode ser identificado por sua posição na entrada de reta em carreiras anteriores) normalmente leva muita vantagem quando não existem outros velozes para incomodá-lo, e ficam prejudicados quando se envolvem em briga prematura. É comum um cavalo inferior em poderio locomotor, mas na condição de único ligeiro, cruzar o disco na frente de outros superiores só porque poupou energias na primeira parte do percurso para suportar a carga dos atropeladores. (Pena que Cristal, Tarumã e São Vicente não tenham nos respectivos retrospectos a posição de entrada de reta dos inscritos).

6) Raia: A genética é quase sempre infalível: filhos de pais gramáticos correm mais na grama, filhos de pais arenáticos se portam melhor na areia, e filhos de pais lameiros, lameiros serão. Para não falar de pais que produzem filhos sem preferência de raia. Assim, é preciso conhecer um pouco de raça para identificar as preferências de reprodutores e matrizes.

7) Tempo: De todos os fundamentos citados, o mais significativo, a meu ver, são as marcas cronométricas médias de um corredor. Sei, por experiência recorrente, que um animal que corre para 80” nos 1.300 metros da areia, por exemplo, jamais perderá para outro que não baixa de 81”, a não ser por acidente de percurso. Para facilitar a equação para tempos corrigidos, tenho por base que um segundo significam 10 corpos. Assim, um corredor que chegou a 10 corpos para 88¨ terá como marca corrigida 89¨. Já para a raia de grama (sem as famigeradas cercas moveis), o parâmetro é de cinco corpos para cada segundo. (Em páreos no quilômetro, vale demais a direção e a intensidade do vento). Aqui, cabe uma observação: a CC da Gávea teima em não graduar o estado da raia de areia em caso de chuva. Assim, a sigla AP identifica “todas” as raias pesadas. E é sabido que raia encharcada (com água) é muito diferente de raia lamacenta, sem água, para efeito de tempo. Um dia, quem sabe, seja eliminada essa falha, que tanto dificulta o analista.

Nada do exposto acima, amigos, quer dizer ganhos na certa. Todos temos ciência que há muitos fatores não-mensuráveis interferindo no resultado final de um páreo, tais como más largadas, prejuízos no percurso, manqueiras, hemorragias ou joqueadas desastradas, para citar apenas alguns. Mas, de um modo geral, se levados em conta os principais fundamentos de análise aqui detalhados, o carreirista estará mais próximo de acerto do que aquele que só aposta por mera advinhação.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Pules que viram pó

Ao longo de muitos e muitos anos de prado, conheci uma enorme fauna de pés frios, gente com poderes contrários aos de Midas, ou seja, tudo em que toca vira pó. Gustavo Gouveia (Gegê para os íntimos) é o primeiro dessa estranha lista, e com méritos.

O homem sempre foi e é um asa negra para si mesmo ou para aqueles que, por infortúnio, dele se aproximam. Fazem parte de sua antologia pessoal coisas do tipo “cavalo em que apostou cair na partida ou no percurso”, “seu preferido, com a vitória assegurada, mancar a poucos metros do disco”, “perder acumuladas premiadas” ou ser “vítima recorrente de desclassificações”. Não fui testemunha, mas ele mesmo me contou que estava entre os muitos que rasgaram pules depositadas em Boticão de Ouro, aquele craque que, à beira da vitória, destroçou os tendões pouco antes de cruzar o disco.

Consciente dessa aura negativa, Gegê já se valeu de todas as mandigas pseudo neutralizantes: ramo de arruda na orelha, figas e fitinhas baianas, nunca entrar com o pé esquerdo no prado, fazer o sinal da cruz antes de chegar ao guichê e até freqüentar terreiros, em busca da ajuda de orixás. Tudo perfeitamente inútil, o azar é e sempre será a sua segunda pele.

O creme de la creme da incrível coleção de azares do Gegê aconteceu em uma remota noturna de Cidade Jardim. Se vencesse um determinado animal do sétimo páreo, ele fecharia uma acumulada milionária, daquelas que o Jockey costumava estampar como chamariz nos recintos frequentados por apostadores. Dada a largada, o fecho do talão tomou a ponta e assim veio até à antiga pedra de apregoações, com a vitória mais que assegurada. Gustavo já estava de pé, gritando à moda dos argentinos – viejo no mas! Eis, que de repente, um drogado, ou bêbado, sei lá, pula a cerca, atravessa a raia de grama e salta bem à frente do ponteiro, que fica irremediavelmente para trás. Branco como cera de vela, Gegê volta a se sentar, murmurando baixinho, como em ritornelo: “Não é possível. Isso só pode ser coisa do demônio!”

Gustavo é meu amigo dileto, freqüento a sua casa, sou padrinho de um de seus filhos e saímos regularmente para um chopinho na Vila Madalena. Mas, no prado, dou voltas e voltas para não cruzar com ele. Quando acontece, a despeito dos meus esforços, tranço os dedos às costas ou procuro rápido um pedaço de madeira para bater três vezes. É que estou meio escalavrado: por muitas e muitas vezes já fui vítima de seus “eflúvios maléficos”.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Pendurando o chicote

Jorge Bessa Paulielo, um bridão de muita classe que deixou o país em 2001 para encarar o desafio de montar na Inglaterra, está de volta, mas só curtindo férias, e com uma novidade: pendurou o chicote, 979 vitórias depois. “Já não suportava mais brigar com a balança”, me diz, sem conseguir disfarçar os 20 quilos a mais que adquiriu desde que tomou a decisão de parar, em 2004.

Esse foi, por coinscidência, o melhor ano de Paulielo na Inglaterra. “Consegui minha primeira vitória lá e até um segundo lugar em uma prova de Grupo II, corrida em Ascot, com o cavalo Frankie’s Dream”. Também foi o ano em que conseguiu levar a família (a esposa Andresa e os filhos Gabriel e Luisa) para a cidade onde mora, Epsomdowns, e também por ter se tornado cidadão britânico.

Jorginho se orgulha de ter sido um dos que abriram o mercado internacional para colegas brasileiros, como o de Macau, na China. “Em 1992 e 1993, montando lá, consegui o vice-campeonato de jóqueis com 69 e 70 vitórias, além de levantar o Derby local. Logo depois, meu lugar foi ocupado por Manoel Nunes e Eurico Rosa, e bem depois por Fausto Durso e Luis Duarte.”

JB é agora instrutor de crianças em uma escola de dressage, a disciplina eqüestre olímpica que privilegia as habilidades do cavaleiro, muito popular na Europa. Trabalha meio período, pela manhã, e passa as tardes gerenciando o seu espaço no Orkut (www.jorgepaulielo.co.ok) , onde mantém contato praticamente diário com a legião de jóqueis brasileiros que trabalham na Inglaterra, Irlanda e Macau, e com amigos de São Paulo.

Voltar para o Brasil? Pouco provável, afirma. “Primeiro porque minha família já se adaptou ao novo país, depois porque para manter aqui a qualidade de vida que tenho lá, precisaria ganhar pelo menos uns 10 mil reais, algo impensável no nosso turfe de hoje.” Paulielo acrescenta que o governo inglês oferece enorme assistência aos que ganham mil libras (ou menos), que é o seu caso. “Pago apenas 10% do aluguel da casa em que moro, não gasto com remédios e tenho assistência médica e odontológica de graça. Aliás, vivo recusando aumento de salário justamente para não perder esses benefícios”.

De vez em quando, a saudade aumenta. Então, o antídoto é acessar sites brasileiros na Internet, telefonar para os parentes, ou então economizar libras para férias anuais no Brasil. Nas deste ano, deu até para uma esticada de uma semana na Bahia.

Na volta, foi a Cidade Jardim para rever amigos. Ao olhar para a ampla pista de grama, sentiu uma pontada no peito, de pura nostalgia. “Lembrei-me de Mr. Fritz, o melhor cavalo que já montei, especialmente na vitória em que ele, superando muitos problemas físicos, derrotou Much Better. E também de Nick de Mestre, outro estropiado que se superou para bater Jinwaki, um craque do Haras Equilia, vencedor do GP Brasil e do Pelegrini.”

Na saudade de Jorginho, um lugar especial para o pai, o também jóquei J.B. Paulielo, falecido no ano passado. Dentre as razões para que decidisse parar de montar, talvez tenha sido esta a que mais pesou. “Difícil continuar encarando desafios sem o incentivo do homem que me fez seguir a profissão”, conclui.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Cábulas

Uma verdade incontestável: todo jogador, de qualquer espécie, é um ser supersticioso. Conta-se, a propósito, que Dostoiewsky, em vida um jogador compulsivo, não entrava nos cassinos sem antes murmurar fervorosamente preces ortodoxas. Pelo visto, sem muitos resultados, já que chegou ao fim de seus dias completamente endividado. Segundo um de seus biógrafos, o escritor russo precisou escrever às pressas uma de suas obras-prima, O Jogador, para cobrir as despesas do hotel onde se hospedava em Wiesbaden, depois de perder até o último tostão na roleta.

Tenho tido, ao longo dos anos, minha dose de supersticiosos, desde os que não dispensam um prosaico raminho de arruda na orelha, até os que cruzam os dedos às costas a cada largada, passando pelos que se servem da macumba para afastar mau-olhado ou os que se revoltam contra os deuses a cada pule furada.

Anselmo talvez seja o mais cabalístico de toda essa fauna. Já chegou ao extremo de viajar a Salvador com o único propósito de agradecer ao Senhor do Bonfim o fechamento de uma acumulada. Voltou com os joelhos em carne viva, mas feliz e agradecido.

Conheço também alguns que gostam de associar o próprio azar a atitudes de terceiros. Os chamados maniáticos. Mário, por exemplo, desiste de apostar toda vez que a pessoa que o antecede na fila do guichê opta pelo seu palpite. Danilo cancela as pules quando o animal que escolheu defeca no cânter. Francisco, há anos, só veste uma determinada camisa em dia de corrida.

De minha parte, faço força para acreditar que o sobrenatural nada tem a ver com o que acontece na raia. Que os resultados são fruto de variantes perfeitamente racionais. Mas, tal como o espanhol da fábula, não acredito em bruxas, pero que las hay, hay.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Fina estirpe

Craque? Não, longe disso. Apenas um desses raros corredores de coração imenso, cujo instinto está acima de graves impedimentos físicos. Da estirpe de um Boticão de Ouro, por exemplo, que, prestes a vencer um grande prêmio, tentou cruzar o disco com fratura exposta.

Jurado era um desses gigantes das pistas, guardadas as devidas proporções. Correndo dos dois aos sete anos, quando ainda não existiam por aqui as facilidades de enturmação dos claimings, esse filho de Coarazito e Jurée conseguiu o espantoso cartel de 23 vitórias, cinco em Cidade Jardim, 7 no Tarumã e 11 em São Vicente, estas últimas praticamente consecutivas e uma delas em tempo recorde para os 1.100 metros. Detalhe: Jurado tinha os sesamóideos fraturados desde a estréia nas pistas. Uma lesão grave e irrecuperável, já que esses frágeis ossinhos, na base dos boletos dianteiros, é que absorvem todo o impacto de um galão.

Seu treinador na Pista Prateada, José Faurer, sempre teve a paciência necessária para lidar com as necessidades especiais do neto de Coaraze. Talvez por isso ele tenha obtido tantas vitórias. Uma dessas necessidades era que o animal precisava ficar deitado por três ou quatro dias, em repouso, sendo alimentado em cochos improvisados, até que, superadas as dores, ele se sentisse em condições de ficar de pé e praticamente “exigir” do seu cavalariço que o levasse para a beira da raia para gramear e corcovear. Outra era que só entrasse na raia para correr.

A coragem, porém, tem seus limites. As fraturas acabaram falando mais alto, sendo chegada a hora de encaminhar o campeão para uma justa e confortável aposentadoria. Acabou vendido a preço de banana para um sitiante de Itapecerica da Serra para servir de garanhão. Pena que tenha durado muito pouco, apenas alguns meses a nova e boa vida de Jurado. Por obra e graça de uma traiçoeira jararaca. Um triste fim, na verdade, para um corredor de fina estirpe.

terça-feira, 18 de março de 2008

O clone de jóquei

Vadeco tinha tamanho de jóquei, cara de jóquei, trejeitos de jóquei, só não era jóquei. Mas tais semelhanças bem que o ajudaram na dura vida de vendedor de barbadas. Por razões de segurança, o nosso clone preferia aplicar seus golpes em cidades do interior de São Paulo. Se a máscara por acaso caísse, estava seguro de que suas vítimas não iriam passar recibo de idiotas, nem fariam despesas com uma viagem, provavelmente inútil, à capital.

A estratégia de Vadeco era primária e raramente falhava. Seu estrategema: arrumar uma vítima para cada cavalo de uma determinada prova. Logo que saia o programa de Cidade Jardim, ele escolhia um páreo de poucos animais, de preferência de perdedores, mais sujeito a resultados surpreendentes. Já na terça, começava sua via-sacra, cooptando as vítimas previamente escolhidas. E para cada uma delas, a mesma ladainha: Estou puxando esse bicho há seis meses, chegou a hora de ganhar. É uma verdadeira barbada. O senhor joga x e dividimos os lucros.

No sábado, com as sementes devidamente semeadas, era só esperar o momento de uma única colheita, e torcer para que o rateio do vencedor fosse alto. Não raro, surgia pule acima de 20 por 1, garantia de lucros suficientes para dois ou três meses de hibernação.

E assim Vadeco ia levando a vida, sem atropelos e sobressaltos. Mas, como dizem os mais antigos, não há uma sem duas, chegou finalmente a hora do acerto de contas para o baixinho que se passava por jóquei. Com dinheiro suficiente para prolongadas férias, decidiu passá-las na Praia Grande. Tomou um ônibus do Rápido Brasil no Jabaquara, sentou-se em uma poltrona de janela do lado direito e se preparou para um bom cochilo.O cochilo virou sono profundo e ele sequer percebeu quando o ônibus quebrou a mureta de proteção de uma curva da Serra do Mar e se lançou por um precipício de uns 200 metros.

Foi o fim da via-sacra do Vadeco. Neste exato momento, é bem possível que ele esteja vendendo no céu suas barbadas para incautos . Ou seria melhor dizer, no inferno?

terça-feira, 11 de março de 2008

Dose sim, dose não

Era um tempo em que os bookmakers pululavam por aí, atendendo aos clientes por telefone e ou em chimbicas espalhadas pela cidade. Muitos proprietários se especializavam em toda sorte de artimanhas para pegar no contrapé quem se atrevesse a bancar seus jogos. Danilo, objeto desta historinha, era um dos mais ardilosos, tendo a seu crédito a falência de muitos banqueiros.

Uma de suas tacadas que viraram lenda aconteceu graças justamente ao pior dos seus defensores, um quatro anos perdedor, acostumado a fechar o lote toda vez que corria. Danilo fez vir dos Estados Unidos o então dopping da moda, capaz de melhorar o bicho em mais de um segundo, e cuja mancha ainda não era identificada pela cromatografia. O nome, se bem me lembro, era “cardioby”,

Danilo sabia, já há algum tempo, que seu treinador passava informações de cocheira para alguns banqueiros, por isso armou o que lhe pareceu uma infalível ratoeira: colocou uma dose do estimulante cardíaco em um frasco sem rótulo e uma dose de glicose em outro. Em tirinhas de esparadrapo, escreveu “sim” em uma e “não” em outra. Entregou os vidrinhos ao treinador, devidamente “identificados”, com a recomendação expressa de que iria telefonar umas quatro horas antes do páreo em que seu matungo correria para dizer qual das doses deveria ser aplicada. Se a “sim”, o bichinho iria para “o pau”, se a “não”, a vitória ficaria adiada.

Na hora combinada, Danilo ligou para a cocheira, dizendo que os banqueiros não estavam querendo aceitar seu jogo, de modo que deveria ser aplicada a dose “não”. O golpe ficaria para outra ocasião. Claro que o treinador imediatamente passou a informação para os books, dizendo que poderiam aceitar o jogo do “patrão” sem susto. Nem passou por sua cabeça que a dose “não” era de estimulante cardíaco e que a “sim” era de glicose.

Naquela tarde, o matunguinho agradeceu a “ajuda“ e cruzou o disco na frente, rateando 20 por 1, o suficiente para “tirar do ar” uns dez banqueiros e para compensar o seu preço original em pelo menos cinqüenta vezes. Danilo já foi desta para melhor, mas o treinador ainda vive e certamente já se perguntou milhares de vezes: "Por que fui tão ingênuo?".

terça-feira, 4 de março de 2008

Patranhas do João

João de Castro Godoy gostava especialmente de duas coisas: acentuar no vestir a sua semelhança com o ator Clark Gable e maquiar certas situações de corrida de modo a que cronistas de turfe desavisados as entendessem de maneira errada.

Naquela manhã, ele estava concentrado em “esconder” o verdadeiro potencial de um potro, anotado para estrear alguns dias depois. Convocou Nélio Carrara, então um jóquei modesto que trabalhava animais para suas cocheiras, deu-lhe instruções e foi se sentar na última fileira dos bancos do padoque, como fazia habitualmente há anos.

O potro largou da seta dos 1.400 metros e cobriu o percurso em pouco mais de 89”, com final de menos de 13” para os 200 metros finais. Uma marca assombrosa para a antiga raia de areia de Cidade Jardim. A título de comparação: o normal era os potros perdedores não baixarem de 90”, em corrida.

Tão logo desmontou, Nélio se dirigiu às pressas para o “patrão”, apontando para o Minerva de duas agulhas que tinha nas mãos. “Devo ter marcado errado, seo João, não é possível que um potro que nunca correu faça um tempo desses!”. Foi o bastante para que Godoy praticamente arrancasse o relógio de suas mãos e o atirasse padoque abaixo. “Desaprendeu, Nélio? Claro que nem chegou perto disso”. Desconsolado, o jóquei desceu as escadas e foi ver se ainda restava alguma coisa do seu cronômetro. De longe, alguns cronistas observavam a cena, com a certeza de que seo João estava aprontando alguma, mas sem saber exatamente o quê.

O tempo passou rápido e o potro, Zaluar, de criação do Haras Bela Esperança e de propriedade de Theotônio Piza de Lara, entrou na raia para a sua primeira corrida, montado por João Manoel Amorim. Na pedra, um rateio para além das expectativas de seu treinador. Claro que o filho do inglês Eboo deu um galope de saúde, cravando 88” para a distância.

Na segunda-feira, quando Carrara chegou para a rotina de todas as manhãs, um envelope lhe foi entregue pelo porteiro do vestiário. Dentro, um Minerva novinho em folha, dinheiro equivalente a três meses de salário e um bilhete: ‘Vê se aprende a marcar melhor com este relógio”. Nélio ficou muito satisfeito, claro, mas jamais esqueceu a humilhação por que passara pelas mãos do Clark Gable caboclo. E os cronistas, finalmente, compreenderam o significado da cena do relógio atirado ao chão.

A pão e água

Durante muitos anos, George Dallas, russo de origem e brasileiro por opção, enriqueceu a galeria de treinadores folclóricos de São Vicente. Seu sotaque carregado e seus métodos pouco convencionais de treinamento faziam dele uma figura única. E foi com ele que aprendi algumas lições, esta, por exemplo: são insondáveis os mistérios que cercam um puro-sangue de corridas.

No comecinho dos anos 80, Dallas recebera convite para treinar alguns animais arrendados por Helcio Meca ao Haras Coqueiro Verde. Um deles era Mau-Mau, cria do Haras Guaiuvira, genioso como o pai Georges Raft, e danado de corredor. Dallas inscreveu-o em um clássico em São Vicente, mas não contava com um imprevisto: a ração encomendada, por algum motivo, não chegara de São Paulo. Acostumado a improvisar, o russo não teve dúvidas: foi ao peão do prado, cortou sacos e sacos de capim, e depois à padaria do Abel, para comprar uma grande quantidade de pão amanhecido. Nos cinco dias anteriores à corrida, Mau Mau e seus companheiros de cocheira se submeteram à uma dura dieta de pão, capim e água.

Eu, que acompanhara todas as idas e vindas do russo, fiquei muito animado com a possibilidade de arrumar uma boa grana. Mau-Mau seria grande favorito e, fatalmente, fracassaria. Ledo engano! Dada a largada, o tordilhão tomou a ponta e foi colocando expressiva vantagem sobre os demais, até cruzar o disco com uns 12 corpos à frente do segundo colocado, como se estivesse possuído por uma força sobrenatural. Pouco depois, os alto faltantes anunciavam: “Mau-Mau acaba de bater o recorde dos 1.100 metros”.

Com cara de tacho, tirei do bolso um maço de pules e atirei-as ao vento. Ainda hoje, desconfio que Mau Mau, às escondidas do velho Dallas, fizera um pacto de sangue com os ton-tons macutes do Haiti. Bater recorde a pão e água? Só mesmo com a ajuda de um vodoo.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Ordem unida

Esta aconteceu em Belo Horizonte, nos duros tempos da ditadura. Não cito nomes por questões óbvias, mas garanto que a história é verdadeira.

Seis jóqueis combinaram “amolecer” um dos páreos, deixando de fora só o piloto que montava o azarão. Como já acontecera outras vezes, em tantos outros prados, o arranjo fez água e o matungo cruzou o disco na frente.

O pior, porém, ainda estava por vir. Na manhã seguinte, toda a vila hípica comentava o “desastre”, até que a história chegou aos ouvidos do presidente da Comissão de Corridas, justamente um coronel linha dura do exército. O homem não teve dúvida, convocou todo mundo para uma reunião em sua sala do quartel.

Eis o relato de um dos participantes: “Ficamos todos juntos, perfilados, como em ordem unida, enquanto o coronel desfiava um discurso sobre ética, caráter, responsabilidade. Por fim, o homem afirmou que a pena de suspensão seria trocada por um corretivo militar. Fomos, então, ncaminhados para um cubículo e ali confinados por 24 horas, a pão e água. Cara, nunca pensei que um dia iria lamentar não ter sido punido de acordo com o Código de Corridas”.


terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Por uma cabeça

Assistindo ao filme Seabiscuit, justo na parte em que o “patinho feio” impõe uma acachapante derrota ao melhor cavalo de sua época, me vieram à mente lembranças correlatas muito queridas.

Elas estão ligadas ao que aconteceu em um gélido fim de-semana de 1961. Eu e mais uns poucos brasileiros estávamos em Buenos Aires para acompanhar a participação de cinco cavalos nacionais no meeting clássico do GP 25 de Mayo, nos santuários de Palermo e San Isidro. Acompanhar, e muito provavelmente, perder em suas patas, já que aqueles eram tempos em que os gringos davam cartas e jogavam de mão, aqui ou acolá. Que ousadia querer batê-los em seu próprio campo de jogo? Pensávamos todos, mais que pessimistas.

Elizabeth, exímia velocista, seria a primeira a ir para o “sacrifício”. Mas, assim, sem mais nem menos, exibindo a linda farda solferino e azul do Haras Ipiranga, ela surgiu no disco à frente de um numeroso pelotão. Pouco depois, foi a vez de Derah, do Julio Zarzur, dar uma impressionante demonstração de poderio locomotor na milha. Por fim, Major’s Dilema, o melhor filho do excelente irlandês Orbaneja, triturou os adversários nos 2.200 metros.

Coisa espantosa. A multidão simplesmente não estava acreditando no que vira. Para dizer a verdade, nem nós, a não ser pelos dividendos, para lá de compensadores. Voltamos todos para o hotel para uma festa que varou a madrugada.

E a humilhação maior para os argentinos ainda estava por vir. No prova mais nobre, de domingo, ninguém acreditava que a vitória pudesse escapar de um dos representantes nativos. O máximo que concediam, aficionados e mídia, era que uma peruana, cantada em prova e verso, pudesse lhes dar algum trabalho. Os nossos Farwell e Escorial se colocavam na condição de outsiders, desapercebidos. Principalmente o primeiro, a quem coubera uma péssima baliza.

Dada a largada, Farwell fez o que já fizera em sua campanha invicta de 15 vitórias consecutivas em pistas nacionais, incluindo o mais recente GP Brasil: tomou a frente e foi quebrando um a um os que ousaram acompanhar o seu ritmo frenético. Bem antes da curva, a peruana já caíra batida, enquanto lá no fim do bloco, Escorial, levado por um calculista de primeira, Pancho Irigoyen, apenas espiava o ritmo alucinante imposto pelo patrício.

L.B.Gonçalves, jóquei de Farwell, me confessou dias depois que nunca vira uma reta tão comprida. “O disco não chegava nunca”, me disse, consternado. Ao fim e ao cabo, esgotado por duelos encarniçados, o pretinho do Haras Jahu entrega os pontos no derradeiro galão. Justo para quem? Para Escorial, certamente um dos mais completos atropeladores do turfe nacional. Uma cabeça separava os dois na transposição do disco. Tal e qual a letra do imortal tango, na voz de Carlos Gardel, Por Uma Cabeza.

Nas arquibancadas lotadas por 60, 70 mil fanáticos argentinos, um silêncio que se cortava a faca, quebrado apenas por gritos histéricos de brasileiros endoidecidos. O impossível tinha acontecido: ponta e dupla dos “macaquitos”.

Temos memória curta, porém. Pouca coisa restou dessa epopéia, a não ser na lembrança de uns poucos que a testemunharam. Talvez alguns recortes de jornais e um filme da época, zelosamente guardados pelo museu do turfe do Jockey Club de São Paulo. Muitos dos turfistas de hoje, abaixo dos 60 anos, sequer sabem direito o que representou essa jornada épica. No entanto, foi ela que nos livrou definitivamente de um incômodo complexo de vira-lata. Foi ela que, seguramente, levou ao reconhecimento internacional a criação nacional.

Bom que Ricardinho esteja por lá, quase meio século depois, escrevendo uma espécie de continuação dessa linda história, iniciada por cinco desbravadores inesquecíveis.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

No escurinho do Bonfim

Os jóqueis João e José Beça Paulielo, gêmeos idênticos, passaram muitas vezes um pelo outro, toda vez que lhes interessava a troca de identidade. Mas, substituírem-se em corrida, com sucesso, foi a glória.

A troca aconteceu no antigo prado do Bonfim. Nas palavras de João Paulielo, a coisa se deu assim: “Osório, um cavalo manhoso de São Vicente, fora inscrito em Campinas justamente numa semana em que o Zé estava suspenso. Assinei a montaria e me preparei para a viagem a Campinas. Antes do embarque, porém, meu irmão apareceu e disse em tom que não admitia réplica. ‘Eu é que vou pra Campinas. Com você, o Osório é capaz de nem largar’.

E assim foi, Zé apareceu no prado como se fosse o irmão João, montou Osório e voltou para casa com a vitória e um bom maço de notas. “No dia seguinte, ele me disse, rindo muito: ‘Sabe aquela clausura onde ficam os jóqueis? É um verdadeiro breu, ninguém enxerga nada. E no padoque nem perceberam que o bicho estava de bridão quando deveria ir de freio’.

A partir daí, João Paulielo passou a acreditar que, no Bonfim, à noite, todos os jóqueis eram pardos.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

O fetiche do número 7

Quando São Vicente dava corridas duas vezes por semana, às quartas e sextas-feiras (lá pelo fim dos anos 50, começo dos 60), muitos apostadores de São Paulo e profissionais de Cidade Jardim desciam a serra para ver e jogar nas corridas da pista prateada. Como integrante da turma, eu sempre me apressava a arranjar um lugar bem no fundo do ônibus para ler em sossego o retrospecto da Turfe Vicentino, coisa, aliás, que raramente conseguia.

Em uma certa quarta-feira, sentou ao meu lado o Francisco D’Avila, então treinador do Stud Seabra em Cidade Jardim. Ele tinha um animal inscrito na segunda carreira e precisava sentir “in loco” os progressos do bichinho. Tão logo saimos da Praça Clovis Bevilacqua, o “gringo” começou, em bom portunhol, uma lenga-lenga sobre uma história dos seus tempos de jóquei.

“Sabes, yo montara unas quantas veces uma eguita veloz e floxa. Largaba entre as punteras e desaparecia no directo. Imaginando que ela poderia se dar melhor em distância longa, dice entonces ao su compositor: “anote a Camponesa em dos mil metros, garanto la victória”. Asi fue. Por suerte, saiu um campo com apenas cinco competidoras. Tomei la punta, percorri todo o percurso sem ser molestado e crucei la meta na frente das outras quatro. Volvi ao padoque loquito para ver quales seriam mis ganâncias. Lá estava afixado no placar o número siete da minha montada e na pedra um rateio estratosférico”.

Que coisa! Corriam cinco e apregoaram o número sete? Olhei bem para a cara do Chico, à espera de um sorriso que confirmasse a peta que inventara. O “gringo”, no entanto, permaneceu impassível, nem sequer corou. Resultado, sem ter podido estudar os páreos, eu teria de apostar no escuro. Bela companhia eu arranjara, pensei.

Mas, estava enganado. Antes que nos separássemos ao descer do ônibus, D’Avila, talvez penalizado pelo meu desconforto durante o trajeto, quis me compensar, aconselhando-me a jogar uns "boletitos" em Varadero, sua inscrição no segundo páreo. O cavalo venceu disparado e, por ironia, sob o número 7. Voltei para São Paulo dormindo o sono dos justos e carregando nos bolsos uma nota preta. Valera mais que a pena fingir que acreditara na “façanha” da Camponesa, número sete.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Um certo Capitão

Em 1962, os responsáveis pelo Haras Ipiranga decidiram, por sugestão do Capitão Bela Wodianer, à época o faz-tudo da família Lodi em matéria de criação de PSI, pela importação de Takt, um fundista alemão (por Gundomar), para ocupar a vaga deixada pelo francês Flamboyant de Fresnay. O problema é que o animal estava confinado na então comunista Hungria e de lá não sairia por vias legais.

O que fazer? O mesmo capitão, húngaro de origem e postado no lado austríaco da fronteira, não teve dúvidas: instruiu para que Takt fosse atrelado a uma carroça, como animal de tração, para assim sair dom país desapercebido. Os guardas fronteiriços enguliram a farsa e o valoroso reprodutor pôde, dias depois, chegar ao porto alemão de Hamburgo, de onde ambos, o capitão e o animal, embarcariam para o Brasil.

Por aqui, em apenas três gerações, Takt produziu vários filhos clássicos, sobressaindo-se Moustache (por Elizabeth), ganhador do Grande Prêmio São Paulo de 1967. Por obra do destino, ele e o capitão Bela, companheiros de viagem em um infecto porão de navio, morreram quase que simultaneamente três anos depois.

Um passarinho me contou

Alto, esguio, trigueiro, topete eriçado como de um galo-da-serra. Assim era Passarinho, personagem que marcou época nas tribunas populares de Cidade Jardim. Sua origem e ocupação eram um mistério, ainda que alguns jurassem ser ele filho de um ex-milionário, que trabalhava como copeiro em uma mansão do Jardim Europa. Sua compulsão por jogar só em grandes favoritos da reunião e em apregoar aos quatro ventos, depois de virada a “pedra” (totalizador ainda não existia) que o seu escolhido era uma grande barbada faziam dele a figurinha carimbada das populares. Outra de suas manias era correr a toda os cem metros de uma cerca a outra quando os cavalos passavam por ali. Caso o favorito vencesse, Passarinho gritava, punho erguido, repleto de pules: “Eu não disse que era uma barbada?” Quando o favorito perdia, para escapar das vaias, o homem sumia, talvez se escondesse em algum banheiro, ou simplesmente pegasse o ônibus elétrico, cujo percurso de volta ao centro incluía a avenida Europa.

Não sei exatamente quando, provavelmente em meados dos anos 70, Passarinho desapareceu, sem deixar vestígios. Teria se mudado de cidade? Teria morrido? Ou apenas tenha pressentido o triste destino das tribunas, condenadas ao vazio por obra e graça de uma nova classe, a dos agentes credenciados. Mas, na memória de muitos, Passarinho continua vivo. Ele é o símbolo maior de um turfe que jaz enterrado nos limites de arquibancadas silentes.

Adrenalina Sintética

Fui testemunha ocular (e auricular) de uma cena impagável que já faz parte do folclore das corridas curtas. Aconteceu em um certa cancha reta das muitas que se espalham pelo Rio Grande do Sul.

Jovino, gaúcho de sotaque carregado e quase sempre paramentado a CTG, é um narrador de ternos e finais muito requisitado por aquelas bandas. Daquela vez, tinha sido contratado a peso de ouro para descrever, com seu habitual entusiasmo, o desenrolar de uma final milionária. Quatro “fórmulas um” em 400 metros de pura adrenalina.

Mas, conversa vai, conversa vem, uma birita aqui, outra acolá, e o nosso narrador já estava pra lá de Bagdá no momento da largada. Para ele, o partidor era apenas um borrão e os trilhos linhas imaginárias. De repente, o estrondo das "gateras", liberando os corredores. Jovino só teve tempo de pegar o microfone e improvisar: “Largaram....passaram por aqui....chegaram!” A síntese das sínteses.

Muitos apupos e, no final, a frustração de um cheque não recebido. Ao dar partida em seu velho Passat, Jovino fez dois juramentos, que segue até hoje: nunca mais beber em serviço e passar ao largo daquela cancha e de sua copa.

Só para os não iniciados em retas: gateras são os boxes, trilhos cercam a piso privado de cada competidor, copa é o bar que abastece os retistas e CTG significa Centro de Tradições Gauchas.

Com os burros n’água

Uma das coisas que mais lamento em minha jornada de escrevinhador foi não ter gravado horas de conversa com Guaraná Santanna, seguramente o mais folclórico dos nossos treinadores, morto em meados dos anos 90. Se eu não tivesse sido tão preguiçoso, talvez pudesse estar colhendo hoje os frutos de um livro de lindas e pitorescas histórias, vividas por ele nos limites de inumeráveis vilas hípicas deste país.

Algumas, felizmente, retive na memória, como esta: início da década de trinta do século passado, as coisas estão difíceis para Guaraná, então iniciando-se como treinador em um já desaparecido prado de Petrópolis. Naquele domingo, precisava ganhar uma corrida a qualquer custo para convencer um proprietário a manter seus cavalos na cocheira. Mas, sua única inscrição, um consumado matungo, provavelmente seria dos últimos. O que fazer? A única opção que lhe ocorreu seria substituir o pangaré por um bom ganhador, semelhantes em pelagem e sinais. Só havia nas cocheiras um espécime nessas condições, mesmo assim manchado de branco na testa e em duas patas. No desespero, Guaraná não teve dúvida: muniu-se de um pincel e tinta preta para sapatos e “eliminou” as manchas do substituto.

Como previsto, o cavalo pintado cruzou o disco em primeiro, com vários corpos à frente do segundo colocado. Mas, o castigo sempre vem a cavalo. Quando o vencedor retornava ao padoque, desabou um temporal e a pelagem original reapareceu.

O próprio treinador me contou que nunca soube o que se passou na seqüência. Antevendo o desfecho de seu “crime”, embarafustou por um bambual que servia de cerca viva da raia e nunca mais botou os pés em Petrópolis. Rindo muito, Guaraná arrematava a história, com um jogo de palavras: “Quis ser muito esperto e acabei dando com os burros n’água”.